Em março de 2016 foi circulado o relatório do painel em um caso iniciado no final de 2013 pela Argentina contra a imposição pela União Europeia (UE) de direitos antidumping às importações de biodiesel provenientes do país platino (DS 473) [1].
European Union – Anti –Dumping Measures on Biodiesel from Argentina (WT/DS473/R)
O caso ganhou notoriedade pois nele se questionou, em abstrato e no caso concreto, a regra do artigo 2(5) do Regulamento Antidumping da União Europeia (Regulamento Antidumping), introduzido em 2002 concomitantemente com o reconhecimento da Rússia como economia de mercado. Este artigo possibilita que a autoridade investigadora faça ajustes nos custos de produção no país exportador quando há dúvidas sobre se eles realmente refletem condições de uma economia de mercado.
A investigação antidumping que deu origem ao contencioso teve como foco o esquema de tributação da cadeia de produção de biodiesel na Argentina, em que à matéria prima (soja) aplicam-se (ou pelo menos aplicavam-se) impostos de exportação mais altos do que aqueles aplicados ao produto final, o biodiesel.
A UE considerou que tal esquema beneficiava os produtores de biodiesel ao propiciar custos de matéria prima artificialmente baixos (decorrentes das barreiras à sua exportação), o que resultaria na distorção dos preços dos produtos finais. Portanto, as vendas domésticas do biodiesel, em relação às quais se compararia o preço das exportações à UE para efeitos de cálculo da margem de dumping, não poderiam ser consideradas como realizadas no “curso normal do comércio” e o valor normal deveria ser ajustado.
Assim, com fundamento na metodologia controversa estipulada no artigo 2(5)[2] do Regulamento Antidumping, a UE desconsiderou os custos reportados pelos exportadores e arbitrou custos maiores, com base no mercado internacional, o que resultou na elevação do valor normal calculado para a Argentina e da margem de dumping[3].
A Argentina alegou que o ajuste de custos de produção na determinação do ‘valor normal’ seria incompatível com os artigos 2.2[4] e 2.2.1.1 do Acordo Antidumping da OMC (AAD), segundo o qual “os custos deverão ser normalmente calculados com base em registros mantidos pelo exportador ou pelo produtor objeto de investigação, desde que tais registros estejam de acordo com os princípios contábeis geralmente aceitos no país exportador e reflitam razoavelmente os custos relacionados com a produção e a venda do produto em causa.” (ênfase nossa)
O painel entendeu que, tal como existente (as such), o artigo 2(5) do Regulamento Antidumping não é inconsistente com o artigo 2.2.1.1.[5], pois não prescreve uma forma de ação particular à autoridade investigadora; ao contrário, entendeu que o artigo abre margem para a atuação discricionária das autoridades investigadoras.
No entanto, o painel deu razão à Argentina quanto à violação dos artigos 2.2 e 2.2.1.1 no caso concreto. A interpretação da expressão “razoavelmente” foi o cerne da discussão jurídica: o painel entendeu que os custos devem refletir razoavelmente os custos efetivamente incorridos e não os custos que seriam incorridos em condições normais de mercado. Assim, o fato de o preço da soja doméstica ser artificialmente baixo devido às distorções criadas pelo sistema tributário da Argentina não constituiria motivo suficiente para concluir que os registros dos produtores não refletem razoavelmente os custos associados com a produção e venda do biodiesel.
A violação do artigo 2.2.1.1., portanto, consistiu na desconsideração dos custos de produção com base nos registros dos produtores e a do artigo 2.2 na utilização de “custos” para matérias primas que não eram os custos prevalentes na Argentina.
As decisões do painel estão sujeitas a apelação. Não obstante, as conclusões do painel dão subsídio para uma reflexão quanto aos limites que as autoridades investigadoras dos demais países-membros da OMC enfrentarão ao lidar com eventuais distorções nos preços praticados no mercado interno de países que adquiram status de “economia de mercado”, como foi o caso da Rússia recentemente e como pode ser o caso da China em um futuro próximo.
A possibilidade de desconsiderar custos de produção e ajustar ou construir o valor normal é uma das formas de lidar com preços artificialmente baixos no mercado interno de países investigados, que podem tornar mais difícil a aplicação de medidas antidumping. Assim, em sendo mantida, a decisão aparentemente “fecha uma porta” que poderia ser usada para lidar com as consequências, no âmbito de investigações antidumping, do reconhecimento da China como economia de mercado, previsto para o final de 2016.
[1] A Indonésia também iniciou caso similar contra a União Europeia (DS480), cujo relatório de painel ainda não foi publicado.
[2] Segundo o qual a autoridade investigadora pode desconsiderar os custos reportados pelos produtores/exportadores dos países investigados se considerar que eles não refletem ‘razoavelmente’ os custos associados com a produção e venda do produto sob investigação.
[3] Cf. Análise mais detalhada em artigo sobre o caso no Ji 2, publicado em dezembro de 2014. Link
[4] 2.2. Caso inexistam vendas do produto similar no curso normal das ações de comércio no mercado doméstico do país exportador ou quando, em razão de condições específicas de mercado ou por motivo do baixo nível de vendas no mercado doméstico do país exportador tais vendas não permitam comparação adequada, a margem de dumping será determinada por meio de comparação com o preço do produto similar ao ser exportado para um terceiro país adequado, desde que esse preço seja representativo ou com o custo de produção no país de origem acrescido de razoável montante por conta de custos administrativos, comercialização e outros além do lucro.
[5] E consequentemente aos artigos 2.2 do AAD e VI:1(b)(ii) do GATT.