Data: 21/05/19

OMC DECIDE PRIMEIRO CASO ENVOLVENDO EXCEÇÃO DE SEGURANÇA NACIONAL NA DISPUTA ENTRE RÚSSIA E UCRÂNIA

No último dia 26/04, o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC (“OSC” ) adotou o relatório do painel no caso Russia – Measures concerning Traffic in Transit, que analisou pela primeira vez desde a criação da OMC em 1995 a utilização da exceção de segurança nacional prevista no art. XXI do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (“GATT”) .

O caso foi levado à OMC em um contexto de deterioração das relações entre Rússia e Ucrânia, que teve seu início em 2014 e perdura até hoje.

Em março de 2014, logo após a declaração unilateral de independência da Crimeia e de Sevastopol e sua anexação à Rússia, a Ucrânia apresentou Resolução à Assembleia Geral da ONU, apoiada por 100 países, reconhecendo a “Integridade Territorial da Ucrânia” .

Na sequência, certos países impuseram sanções econômicas contra a Rússia e esta, em agosto de 2014, reagiu proibindo a importação e limitando o trânsito de determinados produtos originários desses países. Ao longo de 2015, a Rússia promulgou ainda uma série de medidas que proibiam a importação e restringiam o trânsito de certos produtos ucranianos. Essas medidas entraram em vigor no início de 2016, em momento quase simultâneo à data em que o Acordo de Associação entre União Europeia e Ucrânia começou a produzir efeitos.

Em dezembro de 2016, uma nova Resolução da ONU condenou a “ocupação temporária de parte do território da Ucrânia” – i.e. da Crimeia e de Sevastopol. Essa Resolução continha menção expressa às Convenções de Genebra de 1949, que se aplicam nos casos de guerra declarada ou outro tipo de conflito armado.

Em setembro de 2016, a Ucrânia levou uma demanda à OMC, contestando as medidas impostas pela Rússia sobre o tráfego ferroviário e rodoviário de produtos ucranianos em trânsito pelo território russo. A Ucrânia alegou que as medidas violavam a liberdade de trânsito , regras de publicidade e os compromissos assumidos pela Rússia em seu protocolo de acessão à OMC, por terem como efeito (i) banir o trânsito de determinados produtos ucranianos pelo território russo; (ii) limitar o tráfego de produtos ucranianos destinados ao Cazaquistão e Quirguistão e (iii) proibir o trânsito de determinadas mercadorias ucranianas sujeitas à vigilância sanitária e fitossanitária.

Em resposta, a Rússia apresentou uma defesa geral sob o art. XXI(b)(iii) do GATT, alegando que as medidas foram tomadas em um contexto de emergência nas relações internacionais, configurando uma ameaça aos “interesses de segurança” da Rússia. Por esse motivo (i) o Painel não teria jurisdição sobre o caso, já que a aplicação do art. XXI seria discricionária e (ii) a natureza excepcional da medida justificaria o descumprimento dos compromissos assumidos pela Rússia no âmbito do GATT e do protocolo de acessão.

Com esse contexto em mente (inclusive envolvendo o histórico da relação entre Rússia e Ucrânia), o Painel dividiu a análise em relação ao art. XXI em duas partes: uma procedimental e outra substantiva.

1. Questões Procedimentais

O Painel analisou os limites de sua jurisdição sob dois aspectos: a jurisdição adjudicativa e a jurisdição ratione materiae.

Em relação à primeira, o Painel destacou que, assim como outros tribunais internacionais, tinha competência para decidir sobre os limites da sua própria competência . Nesse sentido, o art. 1º do Entendimento de Solução de Controvérsias (“ESC”) estende a competência do OSC a todos os acordos celebrados sob o guarda-chuva da OMC. Como a Ucrânia iniciou a disputa com base no art. XXIII do GATT , e considerando que não há regras especiais de procedimento previstas para o art. XXI, o Painel teria jurisdição adjudicativa para julgar casos envolvendo o art. XXI do GATT.

Em seguida, o Painel destacou que a Rússia teria questionado a jurisdição do Painel com base na alegada natureza “autodeterminável” do art. XXI do GATT, ou seja, seria um limitante à jurisdição ratione materiae do Painel na forma de um direito potestativo da parte que o invoca. O texto do art. XXI(b) do GATT estabelece que:

Nenhuma disposição do presente Acordo será interpretada: (…)

(b) como impedindo que uma Parte Contratante tome qualquer ação que considere necessária para proteção de seus interesses essenciais de segurança

(i) relacionadas a materiais desintegráveis ou a matérias primas que servem à sua fabricação;

(ii) relacionadas ao tráfico de armas, munições e material de guerra e a todo o comércio de outros artigos e materiais destinados direta ou indiretamente a assegurar o aprovisionamento das forças armadas;

(iii) tomadas em tempos de guerra ou outras emergências nas relações internacionais

Diante desse texto, a tarefa do Painel foi analisar o significado do termo “que considere” (em inglês, “which it considers”) pois, de acordo com o argumento da Rússia, o termo seria um qualificante de todas as hipóteses listadas nos itens (i) a (iii) – ou seja, os Membros teriam discricionariedade para definir o que configuraria “guerra ou outras emergências nas relações internacionais” de forma que, uma vez invocado por um Membro, automaticamente excluiria a jurisdição ratione materiae do Painel sobre a disputa em questão.

Com base no art. 31(1) da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, o Painel concluiu que uma interpretação a partir do objetivo do GATT, bem como do efeito útil (effet utile) da forma do texto do art. XXI(b)(iii), indicaria que o termo “que considere” não se estende aos itens (i) a (iii), de forma que o art. XXI(b)(iii) não poderia ser interpretado como um “encantamento que blindasse uma medida questionada de qualquer escrutínio”. Pelo contrário, os itens (i) a (iii) são critérios objetivos que permitem verificar se o art. XXI(b) se aplica ou não a uma determinada medida questionada, sendo ônus do país que invoca-lo enquadrar objetivamente suas medidas em um dos itens (i) a (iii) e sendo competência do Painel julgar se os mesmos foram satisfeitos.

Por esses motivos, o Painel concluiu que tinha jurisdição para julgar a disputa.

2. Questões de mérito

No que diz respeito às questões de mérito, o Painel dividiu sua análise em dois passos: primeiro, verificar se a emergência alegada pela Rússia satisfazia os critérios do item (iii) do art. XXI(b) e, segundo, verificar se requisitos contidos no caput do art. XXI(b) também eram satisfeitos.

Iniciando pela análise do item (iii) do art. XXI, o Painel interpretou o termo “emergência internacional” como uma situação de conflito armado, ou conflito armado latente, ou de aumento de tensões ou crises ou de instabilidade geral em torno de um Estado. Nesse sentido, concluiu que:

• A alegada situação de emergência foi devidamente identificada pela Rússia, a partir dos seguintes fatores: (a) o período temporal em que a emergência surgiu continua a existir, (b) a situação envolve a Ucrânia, (c) a situação afeta a segurança da fronteira da Rússia com a Ucrânia, (d) a emergência levou outros países a imporem sanções contra a Rússia e (e) a situação é amplamente conhecida.
• A alegada emergência qualificava-se como uma “emergência internacional”, pelo fato de haver evidências que indicavam que pelo menos desde março de 2014 e ao menos até o final de 2016, as relações entre Rússia e Ucrânia se deterioraram ao ponto de se tornarem uma preocupação para a comunidade internacional, inclusive com o reconhecimento pela Assembleia Geral da ONU de que a situação envolvia um conflito armado, no final de 2016.
• As medidas foram tomadas “em tempo” de emergência, uma vez que todas foram adotadas entre 2014 e 2016, sendo que o conflito começou a se acentuar em 2014, havendo nexo temporal suficiente entre as medidas e a situação emergencial.

Sendo assim, o painel concluiu que as medidas estavam cobertas pelo subparágrafo (iii).

Passando para a análise do caput do art. XXI(b), o Painel entendeu que o termo “interesses essenciais de segurança” (em inglês “essential security interests”) significaria “aqueles interesses relacionados às funções essenciais do Estado, como a proteção do seu território e de seu povo de ameaças externas, e a manutenção do direito e da ordem pública interna”. A partir dessa definição, o Painel entendeu que cada Membro teria discricionariedade para definir seus interesses de segurança nacional, desde que observada a obrigação de interpretar e aplicar o art. XXI(b) em boa-fé.

Nessa linha, o Membro invocando o artigo teria que demonstrar que o “interesse essencial de segurança” em questão e a “emergência internacional” identificada devem ser suficientemente relacionados para demonstrar a veracidade dos interesses. Assim, um nível suficiente de articulação entre ambos dependerá da natureza da emergência internacional identificada: quanto menos característica for a emergência, menos óbvios serão os interesses essenciais de segurança dela decorrentes. Nesses casos, o membro teria que articular seus interesses de segurança nacional mais especificamente que em casos mais próximos de conflitos armados.

No presente caso, o Painel concluiu que a emergência alegada pela Rússia era muito próxima de um conflito armado e, mesmo que a Rússia não tenha articulado seus interesses de segurança específicos, mencionou-se a segurança da fronteira Ucrânia-Rússia. Apesar de a Ucrânia argumentar que as medidas tomadas pela Rússia em 2016 teriam sido uma retaliação à integração econômica com a UE, essa seria apenas uma explicação parcial das medidas russas. De acordo com o Painel, a decisão da Ucrânia de buscar integração regional com a UE também precisava ser vista a partir da deterioração das relações Ucrânia-Rússia e das Resoluções da Assembleia Geral da ONU.

Por esses motivos, o Painel entendeu que existia um nexo entre a emergência internacional de 2014 e as medidas adotadas pela Rússia nesse período, concluindo que a Rússia satisfez as condições do caput do art. XXI(b) do GATT e, portanto, as eventuais violações alegadas pela Ucrânia estariam devidamente justificadas.

3. Comentários

A decisão do Painel (que já foi devidamente adotada, ou seja, não haverá apreciação pelo Órgão de Apelação) no caso Russia – Traffic in Transit é de especial relevância para o direito da OMC, por ser o primeiro caso que aprecia os limites e escopo de aplicação do controverso art. XXI do GATT.
Apesar de a decisão ter se limitado a apenas um dos três subparágrafos do art. XXI(b), a conclusão de que a exceção de segurança não é uma carta em branco para o Membro que a alegue e que o Painel tem jurisdição para analisar os aspectos objetivos serão um importante guia para eventuais casos futuros que envolvam o art. XXI do GATT.

 

[1] Do termo em inglês Dispute Settlement Body.

[2] A exceção da segurança nacional já foi invocada em casos anteriores à criação da OMC. Um histórico da jurisprudência pré-OMC está disponível no seguinte link: https://www.wto.org/english/res_e/publications_e/ai17_e/gatt1994_art21_gatt47.pdf

[3] UN General Assembly Resolution No. 68/262.

[4] O Acordo de Associação entre União Europeia e Ucrânia havia sido assinado em março de 2014, com o objetivo de promover a integração econômica entre os dois países.

[5] UN General Assembly Resolution No. 71/205.

[6] Art. V do GATT.

[7] Art. X do GATT.

[8] Princípio Kompetenz-Kompetenz.

[9] Autoriza que as partes contratantes iniciem disputas caso alguma outra parte contratante viole alguma obrigação contida no GATT ou impeça ou prejudique o exercício de qualquer direito contratado.

[10] Do termo em inglês “self-judging”.

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