Data: 23/11/22

Painel Arbitral decide caso entre União Europeia e a União Aduaneira da África Austral

Rabih Nasser, Marina Takitani e Leonardo de Paula

Em setembro de 2018, a União Aduaneira da África Austral (Southern African Customs Union – “SACU”) adotou medida de salvaguarda bilateral contra cortes de frango congelado (“CFC”, em inglês frozen bone-in chicken cuts) advindos da União Europeia (“UE”). A medida de salvaguarda consiste em um instrumento de defesa comercial emergencial que restringe temporariamente as importações de um dado produto, por se entender que delas decorre um prejuízo (ou risco de prejuízo) concreto à indústria doméstica da economia importadora, em virtude de um aumento expressivo e inesperado nas importações.[1]

Vale destacar que a indústria doméstica compreende a produção no território do Estado importador de bens cuja venda compete com a dos produtos importados sob denúncia. Dessa forma, as medidas de salvaguarda abrangem, em termos de escopo, todos os países exportadores que porventura exportem para o país que implantou a medida, exceto aqueles que estejam expressamente excluídos no escopo da investigação. No caso em tela, a UE foi a mais afetada por tais medidas, tendo em vista a estimativa de que a imposição de salvaguarda proibiu a UE de exportar o equivalente a 183 milhões de euros, conforme dados de 2016, ano anterior ao início da investigação por parte da SACU.[2]

Diante dessa medida, em junho de 2019, a UE levantou queixa fundamentada no Acordo de Parceria Econômica (Economic Partnership Agreement – “EPA”) firmado entre ela e seis Estados da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (Southern African Development Community – “SADC”). Tais Estados africanos são Botsuana, Essuatíni, Lesoto, Moçambique, Namíbia e África do Sul.  Embora, entre os seis, Moçambique não faça parte da SACU, o EPA prevê que a SACU atue e seja tratada como coletivo em se tratando de disputas referentes à sua ação coletiva.

Em setembro de 2019, em atenção ao pedido da UE, ocorreram consultas formais acerca de taxação indevida sobre os CFC. Em abril de 2020, a UE solicitou a abertura de um Painel Arbitral para a resolução da disputa bilateral. Por conta de atrasos devido à pandemia de Covid-19, esse Painel iniciou seu trabalho apenas em novembro de 2021. As principais conclusões do Painel são destacadas a seguir.

O Painel entendeu que todas as condições e procedimentos previstos no artigo 34 do EPA devem ser observadas para que a medida de salvaguarda seja considerada válida. O Painel se baseia no artigo 31 da Convenção de Viena (Vienna Convention on the Law of Treaties Between States and International Organizations or Between International Organizations) para tanto, segundo o qual deve haver interpretação sistemática e harmônica das previsões legais do EPA. Nesse sentido, o Painel compreende que as condições dos parágrafos 2 e 5 do artigo 34 do EPA são cumulativas para que medida de salvaguarda seja cabível.

No mérito, diante das alegações da UE, o Painel se ocupou de analisar uma série de questões. A primeira delas foi acerca da legalidade da investigação que a South African International Trade Administration Commission (“ITAC”) conduziu acerca das importações em questão, com base no artigo 34 do EPA. Foi esta a investigação que embasou a decisão por parte da SACU de impor a medida de salvaguarda. A conclusão do Painel foi de que, dado que o EPA não contém obrigação expressa de condução de investigação, não cumpre ao Painel avaliar a pertinência da investigação do ITAC.

Tampouco o Painel problematizou o fato de a ITAC ter restringido a sua investigação dos efeitos econômicos das importações de CFC à África do Sul, não a todos os membros da SACU. Na visão do Painel, a África do Sul serve como proxy do bloco, especialmente tendo em vista que os produtores sul-africanos representam mais de 98% do total da produção de CFC da SACU. Indeferidos, portanto, os dois questionamentos da EU acerca da validade geral e do escopo da investigação.

A análise do mérito se voltou então à validade da medida de salvaguarda em si. O Painel divide esse exame em três etapas: (i) a temporalidade da medida, (ii) o nexo de causalidade entre as importações advindas da EU e o dano à economia alegado e (iii) a proporcionalidade da medida.

Primeiramente, quanto à temporalidade, o Painel concede razão à EU, reconhecendo que houve um atraso excessivo da aplicação da medida de salvaguarda após a investigação da ITAC e mesmo após caducar a medida provisional. Com efeito, tal medida interina vigorou por 200 dias, até julho de 2017, enquanto a investigação estava em vias de acabar. Foi, porém, somente em setembro de 2018 que a medida de salvaguarda efetiva (não-interina) entrou em vigor.

Já quanto ao nexo de causalidade entre as importações da UE e o dano às economias da SACU, o Painel entendeu haver evidências conflitantes. Assim, reconhecendo o princípio da economia processual e a capacidade de resolver a disputa sem decidir essa questão, optou-se por mantê-la em aberto.

Em relação à proporcionalidade da medida, o Painel confere razão à UE ao identificar que a salvaguarda foi desproporcional, por duas razões. A primeira foi o lapso temporal entre a investigação, a medida provisória e a medida definitiva, o que dificulta aferir o nexo entre a situação de dano e o papel da salvaguarda. Já a segunda razão foi menos conclusiva; o Painel meramente destacou que a medida incorre no risco de transferir à UE todo o custo de um dano pelo qual ela não necessariamente foi a única responsável.

Por último, o Painel entendeu improcedente a queixa da UE de que a SACU falhou em prover informações relevantes antes da imposição da medida de salvaguarda. O Painel destacou que o parágrafo 7º do artigo 34 do EPA evidencia que a natureza cooperativa das obrigações entre as Partes é dinâmica. Assim, não seria dever da SACU fornecer as informações que a UE não solicitar.

Trata-se de decisão que perde seu efeito prático para o caso concreto, tendo em vista que ela se dá após a expiração da medida de salvaguarda (março de 2022). Em sua decisão, o painel não determina o dever de que a SACU reembolse a UE pelo prejuízo já sofrido devido à medida de salvaguarda, tanto por questionar se as disposições do EPA lhe concedem esse poder quanto por a UE não ter submetido estudos e estimativas do prejuízo.

Mesmo assim, a decisão cria um precedente relevante: em meio a todos os EPAs de que a UE é parte, este foi o primeiro caso em que o bloco acionou o mecanismo de disputa bilateral previsto em EPA. Se por um lado a decisão foi favorável à UE ao exigir alterações no formato de futuras medidas de salvaguarda, foi um resultado benéfico também à SACU, dado que a medida expirou no prazo normal previsto, sem antecipação e tampouco sem determinar reembolso à UE. Com efeito, tal dualidade no resultado se refletiu nas manifestações tanto da EU quanto da SACU em seus websites, com ambas as publicações anunciando a obtenção de uma decisão favorável.[3]

[1]  Mais informações em: https://www.wto.org/english/tratop_e/safeg_e/safeg_info_e.htm. Acesso em 27 de outubro de 2022.
[2] Verificar: https://policy.trade.ec.europa.eu/news/panel-rules-favour-eu-southern-african-customs-unions-safeguard-eu-poultry-cuts-2022-08-03_en.  Acesso em 27 de outubro de 2022.
[3] O comunicado da SACU está disponível em: https://www.sacu.int/docs/arbitration/2022/Press-Release-EU-SACU-Poultry-Safeguard-Measure-Arbitration-03082022.pdf. Acesso em 27 de outubro de 2022. A referência ao comunicado da UE está na nota de rodapé nº 2.

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