Data: 20/10/17

Programas de Política Industrial Brasileiros Condenados na OMC: as conclusões no caso Brazil – Taxation

No dia 30.08.2017, foi circulado o relatório do Painel no caso Brazil – Taxation, iniciado por União Europeia e Japão no âmbito do mecanismo de solução de controvérsias da OMC em face de determinadas medidas tributárias adotadas pelo Brasil.

Diante da complexidade do caso, o Informativo de Jurisprudência Internacional de Nasser Sociedade de Advogados (JI) lança uma série de artigos com a finalidade de analisar o posicionamento do Painel acerca dos programas de política industrial brasileiros. Este será o primeiro de uma série de quatro artigos que serão disponibilizados nas próximas semanas no JI.

Este primeiro artigo apresenta uma visão geral das medidas questionadas, dos argumentos de defesa do Brasil e das principais conclusões do Painel. Os aspectos pontuais de cada um dos programas serão analisados nos próximos artigos.

Discutiu-se a compatibilidade com os acordos da OMC de sete programas brasileiros de política industrial, cuja análise foi dividida em três partes:

(i) os “programas ICT”, compostos por quatro medidas de incentivo fiscal para o desenvolvimento dos setores de tecnologia da informação e comunicação;

(ii) o programa INOVAR-AUTO, que concede incentivos fiscais à indústria automobilística; e

(iii) os programas PEC e RECAP, que concedem incentivos fiscais a indústrias que exportam mais de 50% de sua produção.

Concluiu-se que todas essas medidas são inconsistentes com as obrigações assumidas pelo Brasil junto à OMC, pelos seguintes motivos:

(i) Programas ICT

Violação ao tratamento nacional: os programas ICT estabelecem como pré-condição para o recebimento dos benefícios fiscais a realização de um processo de credenciamento. Dentre os requisitos obrigatórios para uma empresa se credenciar estava a necessidade de produção e desenvolvimento do produto final no Brasil. O Painel entendeu que esse fator fazia com que apenas empresas brasileiras pudessem ter acesso ao programa, resultando em uma discriminação tarifária e regulatória em detrimento de produtos importados, inconsistente com os Artigos III:2 e III:4 do GATT e 2.1 do Acordo TRIMs.

Subsídio proibido – requisito de conteúdo local: discutiu-se ainda a possibilidade da caracterização como ‘subsídios vinculados a conteúdo local’ de requisitos referentes ao processo produtivo (i.e. obrigatoriedade de produção do insumo domesticamente), ao invés de requisitos sobre o produto (i.e. obrigatoriedade de comprar determinado insumo no mercado doméstico). Houve uma bipartição de posicionamentos acerca deste tema[1] e o Painel não se posicionou. O Painel decidiu que, considerando que os programas brasileiros autorizavam que as etapas de produção obrigatórias fossem terceirizadas para outros produtores brasileiros, isso favorecia a produção e os produtos nacionais em detrimento de produtos importados, em violação aos artigos III:2 e III:4 do GATT, 2.1 do Acordo TRIMs, configurando-se assim como subsídio proibido nos termos do Artigo 3.1(b) do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (SCM).

Medida não justificada pela exceção da moral pública: o Brasil alegou que os programas relacionados aos subsídios às televisões digitais teriam uma finalidade social inclusiva, qualificando-se como uma exceção para a proteção da moral pública. Assim, favorecer a produção doméstica em detrimento da importação seria importante para assegurar a continuidade da oferta desses bens. O Painel entendeu a importância das medidas de inclusão social e que os programas poderiam potencialmente satisfazer esse objetivo. Entretanto, considerou que o Brasil não demonstrou a necessidade dessa medida restritiva, pois (i) não demonstrou o risco de descontinuidade da oferta desses bens, visto que os produtos importados também devem ser considerados como parte da oferta e (ii) o Brasil poderia tomar medidas alternativas menos restritivas ao comércio para satisfazer esse objetivo (como, por exemplo, reduzir as barreiras à importação de TV digital).

(ii) Inovar-Auto

Tratamento nacional: entendeu-se que dois aspectos do programa seriam uma violação ao princípio do tratamento nacional previsto no Artigo III:2 do GATT. Primeiramente, apenas produtores brasileiros poderiam se credenciar no programa, violando o tratamento nacional pelos mesmos motivos dos Programas ICT. Em segundo lugar, entendeu-se que os programas de crédito tributário eram discriminatórios pois, enquanto produtos brasileiros tinham créditos ilimitados, os produtos importados receberiam tais créditos apenas até um determinado limite.

Subsídio proibido – requisito de conteúdo local: o Painel entendeu, pelos mesmos motivos dos Programas ICT, que os requisitos de produção nacional com a possibilidade de terceirização dos processos produtivos a empresas brasileiras constituíam requisitos de conteúdo local nos termos do Artigo 3.1(b) do SCM; assim, os créditos presumidos de IPI constituíam subsídios proibidos, pois estavam condicionados ao uso de bens produzidos localmente.

Medida não justificada para a proteção da saúde pública e de recursos naturais exauríveis: em sua defesa, o Brasil alegou que (i) o Inovar-Auto tem por finalidade reduzir a emissão de CO2 e aumentar a segurança do veículo, fatores esses que constituem medidas excepcionais para a proteção da saúde pública – Artigo XX(b) do GATT – e (ii) o Inovar-Auto contribui para a conservação do petróleo e de seus produtos derivados, o que se qualificaria como uma medida excepcional para a proteção dos recursos naturais – Artigo XX(d) do GATT. O Painel entendeu que tais objetivos de fato se encaixariam nas exceções dos subparágrafos (b) e (d), entretanto, o Brasil não teria apresentado provas que evidenciassem como a inserção de provisões discriminatórias contribuiria para a satisfação de seus objetivos. Além disso, existiriam medidas alternativas menos restritivas ao comércio para a persecução desses objetivos.

Nação mais favorecida: União Europeia e Japão alegaram que o programa Inovar-Auto concedia benefícios ao México e aos países do Mercosul que não eram estendidos aos demais países, em violação ao princípio da nação mais favorecida. O Brasil alegou que tais medidas seriam justificadas pela Cláusula de Habilitação, no âmbito da ALADI, devido à celebração de acordos de complementação econômica com esses países favorecidos. A maioria do Painel entendeu que não havia um nexo causal entre a discriminação tarifária e os acordos regionais invocados, motivo pelo qual não poderia ser justificada pela Cláusula de Habilitação. Um painelista proferiu voto separado, pois o parágrafo 2(c) da Cláusula de Habilitação não foi invocado pela UE e pelo Japão em seus pedidos de consultas, motivo pelo qual a análise da questão da nação mais favorecida estaria fora da jurisdição do Painel.

(iii) Programas PEC e RECAP

Subsídios proibidos – condicionados à exportação: o Brasil argumentou que, devido à natureza do sistema tributário brasileiro, a concessão de benefícios fiscais à exportação era uma medida de administração tributária para evitar o acúmulo de créditos pelas empresas exportadoras, cujos produtos finais estão isentos de tributação. Embora o Painel tenha reconhecido que as empresas exportadoras brasileiras podem ter um problema de acumulação de crédito e que uma política destinada a evitar esse acúmulo pode ser um objetivo legítimo, entendeu-se que o Brasil não demonstrou a existência de uma regra de aplicação geral para evitar esse problema. Assim, esses programas constituiriam subsídios proibidos, pois condicionados à exportação, nos termos do Artigo 3.1(a) do SMC.

Comentário

Este caso ilustra as restrições existentes nos acordos da OMC à adoção de medidas de política industrial. A existência dessas restrições no direito internacional decorre do reconhecimento de que certos tipos de medidas podem distorcer os fluxos comerciais e desequilibrar as condições de concorrência. É o caso do apoio governamental condicionado a desempenho exportador ou conteúdo local. São medidas típicas de apoio à atração de investimentos no setor industrial e de incentivo à exportação e estão no cerne dos questionamentos da UE e do Japão neste caso.

Em geral, espera-se que os formuladores de políticas comerciais e industriais levem em consideração essas regras internacionais ao desenhar medidas de estímulo a setores industriais. No entanto, mesmo que haja incompatibilidade evidente, a adoção de medidas pode acabar sendo justificada por considerações de política econômica “interna” e pelos ganhos que se espera obter enquanto não há uma decisão condenatória. Aparentemente, é o que ocorreu neste caso.

Este caso marca o mais amplo questionamento das políticas industriais brasileiras. A motivação principal de UE e do Japão parece ter sido evitar a perpetuação ou repetição dessas medidas e fazer com que eventual condenação sirva como desestímulo à adoção de políticas semelhantes por outros países.

O caso ainda será objeto de análise em grau de recurso, pelo Órgão de Apelação, de forma que a decisão ainda não é final e o Brasil ainda não tem prazo para tornar as medidas compatíveis com as regras internacionais. Continuaremos a acompanhar o caso e faremos uma análise mais detalhada das questões jurídicas envolvidas mais adiante.

 

[1] Canadá e Estados Unidos defenderam que em situações nas quais há obrigatoriedade de produção de produtos intermediários pelo próprio recipiente do subsídio, isso é um requerimento do processo produtivo, mas não um requisito de conteúdo local. Já União Europeia e Japão argumentaram que quaisquer requisitos que determinem a utilização de insumos locais (sejam fabricados por terceiros ou pelo próprio recipiente) são considerados requisitos de conteúdo local. O Brasil não se posicionou sobre o tema.

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